CANÁBIS MEDICINAL

O uso da canábis como medicamento é uma prática que remonta aos tempos da China antiga. O primeiro registo desta prática surge em 2700 a.C., onde fazia parte da farmacopeia chinesa, sendo indicada no tratamento da dor crónica, patologias do foro psicológico, dor reumática, doenças relacionadas com o sistema reprodutor feminino, malária, entre outras1,2.

Mas o uso desta planta para fins medicinais não se limita à China, e registos desta prática encontram-se um pouco por todo o mundo: na Índia o seu uso começou por volta de 1000 a.C. (como analgésico, anticonvulsionante, anestético, anti-inflamatório, antibiótico, entre outros usos)2; existem registos que os assírios também usaram esta planta com fins medicinais a partir do nono século a.C. (para inchaços e contusões, no tratamento para a depressão, atrite, entre outras)3; na Arábia, está reportado o uso da canábis como diurético, digestivo, analgésico e antiepilético a partir de 1000 d.C.3,4; o uso da canábis com fins medicinais também aconteceu em África, pelo menos desde o século XV, sendo usada para tratar a malária, febre, asma, disenteria, entre outras5; o uso medicinal da canábis no continente americano terá iniciado por volta do século XVI, onde registos indicam o seu uso para o tratamento da dor de dentes e cólicas menstruais.

A inclusão da canábis na medicina ocidental terá acontecido devido aos trabalhos do médico irlandês William B. O’Shaughnessy e do psiquiatra francês Jacques-Joseph Moreau. A influência de O’Shaughnessy deriva da publicação do artigo “On the preparations of the Indian hemp, or gunjah”, em 1839. Este artigo foi o resultado do seu estudo da planta, e nele descreve várias preparações à base de canábis, avalia a sua toxicidade em animais e avalia o seu uso em pacientes com diferentes patologias, conseguindo demonstrar o potencial terapêutico da canábis. Quanto a Moreau, a sua influência deve-se à publicação do livro “Du Hashish et de l’Alienation Mentale: Etudes Psichologiques”, que resulta das experimentações que realizou com diferentes preparações à base de canábis na tentativa de perceber o seu potencial no tratamento de doenças mentais. Após a sua introdução na farmacopeia ocidental, a canábis começou a ser usada pelas suas propriedades analgésicas, sedativas, anticonvulsionantes, de estimulação do apetite, antibióticas e baixa toxicidade. Relatos da sua eficiência no tratamento de variadas doenças e sintomas levou a uma vasta utilização desta planta e dos seus derivados com fins terapêuticos. Na segunda metade do século XIX e no início do século XX, a comunidade científica corroborava de alguma maneira os relatórios iniciais do potencial terapêutico da canábis. No entanto, as legislações restritivas que foram adotadas um pouco por todo o mundo a partir dos anos 30 acabaram com o uso medicinal desta planta (que foi removida da farmacopeia americana no ano 1941)6,7.

O interesse da comunidade científica na canábis reapareceu quando, em 1964, foi identificada a estrutura to THC pelos cientistas Gaoni e Mechoulam8, originando uma proliferação de estudos acerca dos componentes ativos desta planta que permitiram uma grande aprendizagem sobre a sua farmacologia, bioquímica e efeitos clínicos9. Contudo, ainda se desconhecia a razão para tais efeitos, não se sabia os efeitos da canábis no cérebro nem a nível molecular. Isto mudou quando Allyn Howlett e William Devane identificaram os primeiros recetores de canabinóides (CB1) presentes no corpo humano em 1988, fazendo com que o interesse da comunidade disparasse durante os anos 90. De facto, foi durante esta década que foi descoberto mais um recetor de canabinóides (denominado CB2), em 1992. R. Mechoulam, em colaboração com W. Devane, descobriu um novo neurotransmissor muito parecido com o THC, um “endocanabinóide” que ocorre naturalmente no corpo humano e se une aos recetores de canabinóides tal como o THC, denominado anandamina. Ainda na década de 90, em 1995, o grupo de Mechoulam descobriu o segundo endocanabinóide, o 2-araquidonnoilglicerol, ou 2-AG. Foi também nesta década que os cientistas, ao traçarem as vias metabólicas to THC, acabaram por descobrir um sistema de sinalização molecular até aqui desconhecido que, no entanto, regula várias funções biológicas – o sistema endocanabinóide (assim denominado devido à planta que permitiu a sua deteção).

Desde esta altura que o interesse na canábis medicinal tem vindo a aumentar constantemente. Esta conclusão é possível pelo contínuo aumento de artigos científicos sobre este tema (que envolve o estudo dos canabinóides, o estudo da sua interação com o sistema endocanabinóide, o estudos dos benefícios atribuídos à canábis, etc), pelo interesse de várias empresas farmacêuticas que têm vindo a apostar no desenvolvimento de terapias e de fármacos que têm por base a canábis, mas também pelo facto da legislação em torno da canábis medicinal ter vindo a mudar. Nos dias de hoje são vários os países que já têm legislado o uso da canábis medicinal como terapia, sendo Portugal um deles.
De facto, a perceção do valor e do potencial da planta da canábis como terapia tem vindo a mudar. Atualmente, o interesse neste tema vem de todos os lados, desde pacientes, à comunidade médica, a grandes empresas farmacêuticas e aos governos, que regulamentam o seu uso. A evidência científica que se continua a acumular tem demonstrado a segurança e eficiência do uso da canábis e dos seus derivados como tratamento para variadas patologias.
Em Portugal, desde Janeiro de 2019 que o uso de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis para fins medicinais está regulamentado, através do Decreto-Lei nº 8/2019.

  1. Brand EJ, et al. Cannabis in Chinese Medicine: Are Some Traditional Indications Referenced in Ancient Literature Related to Cannabinoids? Front Pharmacol. 2017 Mar 10;8:108.
  2. Touwn M. The religious and medicinal uses of cannabis in China, India and Tibet. J Psychoactive Drugs. 1981;13(1):23-34.
  3. Aldrich M. History of therapeutic cannabis. In: Mathre ML, eds. Cannabis in medical practice. Jefferson, NC: Mc Farland; 1997. p. 35-55.
  4. Fankhauser M. History of cannabis in Western Medicine. In: Grotenhermen F, Russo E, eds. Cannabis and Cannabinoids. New York: The Haworth Integrative Healing Press; 2002. Chapter 4. p. 37-51.
  5. Du Toit BM. Cannabis in Africa. Rotterdam: Balkema; 1980.
  6. Mikuriya TH. Marijuana in Medicine. Presented as part of a Panel Discussion on Current Problems of Drug Abuse before the Second General Meeting at the 97th Annual Meeting of the California Medical Association, San Francisco, 23-27 March 1968.
  7. Zuardi AW. History of cannabis as medicine: a review. Rev Bras Psiquiatr. 2006;28(2):!53-7.
  8. Gaoni Y, et al Isolation structure and partial synthesis of an active constituent of hashish. J Am Chem Soc. 1964;86_1646-7.
  9. Mechoulam RJ. Marijuana: chemistry pharmacology and clinical effects. New York: Academic Press. P. 2-99.
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